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Uma mulher cisgênera irá se utilizar da ideia de que “transgêneros se tornam mulheres por causa da moda e futilidade” para criar um romance. A autora em questão, chamada Fay Weldon, diz também que a “maior arma contra as mulheres criada pelos homens está no fato de homens poderem se tornar mulheres” e portanto, poderem “controlar o corpo das mulheres”. Weldon se diz feminista e que mulheres trans estariam escolhendo serem mulheres porque é “mais fácil ser mulher na sociedade ocidental”.

Bom, a ideia de que mulheres transexuais são “homens que controlam os corpos de mulheres” pelo simples fato de existirem é bastante esdrúxula e tentar buscar alguma relação minimamente lógica e coesa com a fala subsequente da autora sobre como está sendo “fácil ser mulher no ocidente” é um verdadeiro desafio à racionalidade. Vamos nos abster de procurar qualquer sentido lógico na transfobia, pois certamente não vamos encontrar; o certo é que a transfobia continua gerando inúmeros efeitos nocivos na sociedade, e precisamos combatê-la.

Weldon também disse que irá escrever esse livro em defesa de Germaine Greer, uma famosa e notória transfóbica que se reivindica feminista radical. Weldon disse que se solidariza com Greer, já que esta autora frequentemente recebe críticas por dizer coisas como “cortar o genital não transforma homens em mulheres”. Por que será, né?

Em suma: uma mulher cis se utilizando do estigma social sobre pessoas trans para escrever um livro. Se utilizando de nossas existências, fazendo um verdadeiro extrativismo contra uma população que ela considera abjeta. Conseguem ver os problemas nessa história? Se transexuais estariam se “apropriando” do corpo de mulheres, o que dizer de uma mulher cis que se apropria desta noção sobre o que é ser mulher trans para escrever um romance?

Como me disse Amara Moira, ela tentará escrever um livro sobre pessoas trans mas no fundo será um livro sobre a própria transfobia dela.

A ideia de que as identidades de mulheres trans se resumem aos famigerados “estereótipos de gênero” é transfóbica (preciso dizer porquê?). Mas gostaria de apontar como esse pensamento é relativamente difundido em alguns meios feministas. Percebam que esse mesmo enunciado poderia ser dito por uma pessoa transfóbica qualquer assim como por pessoas que dizem lutar por um feminismo pretensamente radical.

Quando pessoas que se dizem feministas radicais dizem que “ser mulher não é vestir nossos sapatos e usar maquiagem”, trata-se da mesma ideia, de que mulheres trans não são mulheres, e de que a vida e a existência de mulheres trans, assim como o reconhecimento de nossas identidades, só poderia se resumir e se basear em um suposto reforço de “estereótipos de gênero”. Se trata da ideia de que ser mulher trans só poderia se resumir à aparência, e a aparência à futilidade. Por extensão, a vida de mulheres trans se resumiria à futilidade. Se certas vidas são fúteis, quem em sã consciência ousaria lutar por elas?

Para essas feministas, lutar por direitos trans só poderia se dar através de uma ideologia individualista, liberal ou de alguma forma de essencialismo biológico ou psicológico. O que é um erro: ao tentar manter a luta por reconhecimento trans restrito ao campo do liberalismo ou do essencialismo, se está justamente reproduzindo sub-repticiamente o próprio liberalismo e o essencialismo que, na aparência deste posicionamento falsamente crítico, se julgava se distanciar.

A ideia de que as identidades das mulheres trans são superficiais (pressupondo que algumas identidades não seriam, portanto) é simplesmente a base para a transmisoginia. Se trata de uma ideia também de naturalização da cisgeneridade.

A ideia de que haveria a necessidade de encontrar algum “motivo”, seja de ordem biológica, psicológica ou social, que levaria alguém a ser trans, em especial, mulheres trans, é uma forma recorrente de como a transfobia e cissexismo funciona em nossa sociedade.

A perspectiva hegemônica não vê sentido no fato de ousarmos existir enquanto trans. Por isso, procuram (e encontram) motivos esdrúxulos e neste mesmo processo colocam nossas vidas em termos esdrúxulos. Só querem encontrar motivos na medida em que partem do pressuposto de que nossas vidas trans não tem sentido.

Por isso o transfeminismo é a mudança de terreno quando falamos em “motivos” pelos quais pessoas “escolhem” ser trans. A questão de procurar motivos é modificada: nossas vidas tem valor e a partir disso não se pode justificar nenhuma forma de violência pelo fato de pessoas não se enquadrarem em normas cisgêneras. Não há motivo para encontrar motivos que se fundam na negação de nossa existência.

Leia também: http://www.independent.co.uk/news/uk/home-news/transgender-fay-weldon-women-fashion-clothes-novelist-men-lgbt-a7669871.html

1 Comment

  1. Danielle says:

    Cara Beatriz, concordo com seu texto. Mas sou da opinião que na hora de argumentar, é bom reiterar o óbvio. Por isso, eis minha crítica, e peço que a leve como uma sugestão construtiva – como quem te dá mais munição. Quando você pergunta “preciso explicar?” é por que sim, precisa explicar. Todos os pontos no texto onde você desmonta o raciocínio da autora devem ser explícitos – ainda que pareça ridículo. E isso por que não apenas pessoas conscientes e alinhadas contigo lerão o texto (para essas inclusive é fácil concordar contigo), mas o mundo lerá. Indecisos, ignorantes, alheios, críticos, inimigos declarados, a avó, a tia, a trans assunto do texto, o marido, a mulher… todo mundo. E pra grande maioria, sim, precisa explicar. Assim não só você fortalece o fluxo mental de pessoas que não haviam cogitado a questão, como dá argumentos para as mudanças de ideia – gente que nunca havia pensado no assunto passa a pensar com clareza e pode até discutir com o vizinho o assunto – com os argumentos claros que você forneceu. Então, se em algum momento te passar pelos dedos a frase “preciso explicar?” ou se te parecer que o assunto é senso comum, ou que te parece óbvio, dê um passo atrás e lembre-se do país onde vive. Aqui, melhor pecar pelo didatismo do que perder um possível novo simpatizante – quem sabe aquela avó esbarra no seu texto e por causa dele em algum momento, no ônibus, na banca de jornal ou na padaria não nos sai uma grande militante?
    Com amor, Danielle.

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