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Parte 1.

Gênero é um conceito que surgiu na academia. Primeiro aparece no campo da biologia e da bioética, especialmente para pensar o sujeito intersexo. Depois, no campo dos estudos feministas, onde é formulado em 1975 através do pensamento de Gayle Rubin. Não demora para o feminismo incorporar amplamente o termo gênero ao seu vocabulário. Vinte anos depois da publicação de “Tráfico de Mulheres” (Rubin) quase todas nós já usávamos essa palavra como se ela tivesse sempre existido e, portanto, demandasse poucos esforços conceituais, críticos ou investigativos, exceto por parte de certas pesquisadoras e das feministas pós-estruturalistas, como Anne Fausto-Sterling, Gayle Rubin e Judith Butler.

A trajetória do “gênero” nos estudos feministas nos mostra que a gente também é capaz de incorporar o debate sobre cisgeneridade. Por que, entretanto, o termo cis tem sido amplamente “acusado” de ser conceitual demais, acadêmico demais, e até complicado demais, para o feminismo se historicamente já aceitamos tantos outros com essas características? Por que ‘cis’ não alcança popularidade nem é usado, mesmo quando tentamos “simplificar” ao máximo a explicação do que ele é? O que está em jogo ao se alterar o parâmetro da normalidade, quando nós – as pessoas trans – éramos antagonicamente definidas em relação a ele?

Tanto “cisgênero” quanto “gênero” são categorias criadas para desnaturalizar certas dinâmicas, hierarquias e formas de exploração. No entanto, a noção de “gênero” falhou ao desconsiderar a diferença entre as pessoas trans e as demais. E por desconsiderar isso, criava-se uma falsa “naturalidade” sobre o “ser homem” ou o “ser mulher” que, a princípio, o próprio termo quis combater.

O conceito de gênero só desnaturalizou a condição de mulher cis até determinado ponto, pois quando esse corpo se relacionava com os corpos trans, voltava a ser considerado natural, não mais na posição de subalterno. Isto é, de repente, a naturalidade combatida passava a ser algo “idealizado”. É extremamente desleal desnaturalizar o “sexo” dentro de uma politica de conveniência que garante que essa naturalidade pode ser resgatada quando for “necessário”.

Assim, nas relações entre pessoas cis e trans, “gênero” tornava-se temporariamente um eufemismo para a noção pseudo-abandonada de “sexo biológico” como a engrenagem natural de certas dinâmicas sociais. Não estou querendo criar uma hipótese na qual “gênero” (ex: homem, mulher, travesti) e “identidade de gênero” (ex: cis, trans, transexual) seriam a mesma coisa, mas considerar as pessoas transexuais no desenvolvimento do conceito de gênero necessariamente significaria implicar um termo no outro e, portanto, tornaria o primeiro mais completo e coerente.

Vocês vão tentar me lembrar que são vinte anos de diferença cronológica entre o surgimento de um termo e outro, e isso até importa no quanto são populares, mas eu vou lembrar a vocês que em 1995 toda a literatura feminista falava de gênero. Ou seja, 20 anos após o surgimento, toda a literatura feminista falava de gênero. Cis tem 22, e no Brasil tem 12. É gritante quanto são distintos os pesos e medidas aplicados aos esforços teóricos/conceituais das pessoas cis e os das pessoas trans.

De repente, o mundo acadêmico – que sempre validou “a seriedade” do pensamento das pessoas cis – passa a ser considerado elitista pelas mesmas pessoas. Basta se levantar a mera suspeita da ideia de cisgeneridade ter surgido nesse universo, o que sequer é verdade. Muito pelo contrário, a Universidade tem recusado todo tipo de linguagem formulada por travestis e pessoas trans, como o pajubá e o próprio termo cis, os substituindo repetidamente por “heterossexuais” e criando mais confusões entre sexualidade e identidade de gênero. Isso, na verdade, não passa de um vício em atribuir qualquer raciocínio complexo à academia e isolá-la de conhecimentos “externos”, bem como se isolar dela quando é conveniente ou “estratégico”.

Em seu Facebook pessoal, Jota Mombaça fala sobre como as críticas da elite queer-cis-acadêmica brasileira em relação à cisgeneridade “sempre ocorrem por meio de falas laterais, de tretas internas aos grupos de estudo e departamentos etc. nunca como parte da sua produção intelectual oficial”. A autora observa que “do modo como debate tem sido feito, fica bastante evidente que o que essa gente quer refutar não é a categoria cisgeneridade, mas sim apaga-la. Por isso não a estudam, não adensam sua problematização e ficam só repetindo frases de efeito tipo ‘o conceito de cisgeneridade é violento’, ‘é um termo essencialista’… É mesmo muito fácil, desde uma posição privilegiada no ranking acadêmico brasileiro, tentar minar sub-repticiamente o uso de uma categoria que tem sido um dos pilares de elaborações das pessoas trans autoras de estudos sobre gênero e sexualidade”.

Parte 2.

A característica que mais define o “gênero” é sua possibilidade de ser uma ferramenta útil para desnaturalizar a opressão da mulher, pois é no marco da sua formulação que “ser mulher” ganha um significado fora do campo da anatomia pela primeira vez. Antes do seu surgimento, há relatos de falas questionando “como uma mulher poderia abrir mão do seu sexo para participar da política”. Nesse momento, percebe-se finalmente que construir uma sociedade livre da dominação machista e misógina é possível, pois são frutos da história, não intrínsecas ao corpo em si. Gayle Rubin, em O Tráfico de Mulheres, explica o ‘sistema sexo/gênero’ como o “conjunto de arranjos através dos quais uma sociedade transforma a anatomia biológica em produtos da atividade humana”. Considero essa definição ao mesmo tempo brilhante e datada.

É limitada pois perde de vista algo que pesquisadoras e feministas pós-estruturalistas como o Anne Fausto-Sterling, Gayle Rubin e Judith Butler criticarão nos seus textos. Em certo sentido, o sexo não faz o gênero, mas o gênero faz o sexo. Isso porque a anatomia foi instrumentalizada (pelo poder médico cisnormativo e seus apêndices) em função da administração das ideologias misóginas, cissexistas, heterossexistas, diadicas etc. como se fossem elas mesmas naturais, não desfruto da história. É impossível, do próprio ponto de vista biológico, que o “sexo” – em toda a sua complexidade – dê continuidade a um processo social de dominação de mulheres, especialmente as transexuais e intersexo.

Além disso, a definição de Gayle Rubin também esquece que essa transformação da “anatomia biológica” (sexo) em “produtos da atividade humana” (gênero) esbarra em processos humanos. Por processos humanos estou falando de trocas – conscientes ou não – que o indivíduo realiza entre a sua subjetividade e as normas sociais; trocas a partir das quais nossas identidades vão se formando mais ou menos próximas das regras impostas ao nosso corpo quando nós nascemos.

Afastar-se da norma implica em sanções que atingem até a nossa expectativa de vida, porque toda regra é coercitiva. Portanto, vai se estabelecendo diferenças concretas nas realidades das pessoas, e entre elas está a identidade de gênero (ex: transexual e cis). Reconhecê-las é importante para o feminismo, pois também afeta as mulheres, e se queremos pensar sobre as questões da misoginia, não podemos deixar de lado as nossas demandas específicas.

Cis é a identidade de gênero que ocorre dentro do limite das expectativas ditadas pela sociedade quando a pessoa nasce. Isso passa por um sistema que precisa garantir que homens e mulheres existirão de forma “programada” para perpetuação da família (uma das bases de sustentação do capitalismo), e então prevê punições para quem foge às suas regras. Gênero é o performativo de signos sociais que constroem as noções de masculinidade, de feminilidade ou que confunde e rejeita os dois.

A cisnorma custa a ser nomeada. Isso porque ela produzia a diferença a partir dos parâmetros de naturalidade, sanidade e salubridade. Parâmetros em relação aos quais éramos antagonicamente definidas. O que a gente vê acontecer quando os autistas criam a palavra “aloísta”, os intersexos criam a palavra “diádico” e as pessoas trans criam a palavra “cis” é verdadeiramente uma virada, ou pelo menos um marco, na pseudo-alteridade estabelecida até então. Se vocês querem realmente respeitar as pessoas trans, não podem começar a fazer isso cortando as nossas investidas conceituais. É preciso que estejam dispostos a aprender o nosso vocabulário. Não só o semântico. É preciso considerar o nosso vocabulário semântico como uma consequência da nossa urgência política. Isso significa desestabilizar o mundo que existia aqui antes de reivindicarmos nosso lugar no feminismo.

 

Fonte da imagem:ttps://medium.com/@odeiodoritos/ir-ao-banheiro-e-ao-medico-em-paz-sao-privilegios-cisgeneros-9a5397fb63b

Caia Coelho
Caia Coelho
Caia Coelho é travesti, gorda, bissexual, transfeminista, membra da Nova Associação de Travestis e Transexuais de Pernambuco (NATRAPE), graduanda em Direito na UNICAP e em Ciências Sociais na UFPE

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