A gente adora um meme não é? A internet brasileira vive nessa onda, afinal o Brasil e a mídia são o caldo que fazem essa fábrica de memes acontecer. O que tem a ver meme com infância? Desde ontem, tudo. Isso porque a nova ministra da família, da mulher e dos direitos humanos, foi filmada dizendo que a partir daquele dia, uma nova regra existe no Brasil, menino de azul e menina de rosa. E a rede social ferveu de novo, algo que sempre acontece ainda mais depois das fake news envolvendo kit gay, mamadeira de piroca e outras loucuras mais.
Muita gente falando do trio: azul, rosa e laranja com clara referência ao Queiroz , além de fotos de homens de rosa, mulheres (inclusive a própria ministra ) de azul e personalidades que se revoltaram com a fala. A esquerda defendeu os LGBTs falou da liberdade, mas um ponto pra mim mostrou a falta de cuidado e relevância com o assunto, o meme do nascimento de uma criança dizendo que ela nasceu sem roupa. Lembrei da fala do médico pra minha mãe dizendo que uma criança havia nascido , já que por ser intersexo e portador de genitália indefinida era ainda preciso uma bateria de exames para descobrir meu sexo biológico e esse meme me mostrou o quanto as pessoas não se importam com a infância e o poder simbólico que contém a tal frase. Sem saber meu sexo, meus pais ficaram sem saber o que fazer e fiquei pensando se a tara do gênero que sempre foi forte, hoje essa tara fica mais exposta, quando num momento épico pessoas são convidadas para um evento em que em seu ápice o recheio de um bolo revela o sexo da futura criança e destaca o quão importante é o sexo de uma criança em nossa sociedade.
Creio que alguns dos leitores me acompanham na internet, sabem que carrego em mim no corpo, na mente e na alma a transgeneridade e a intersexualidade. E diante desse recado da ministra, ficou claro o aviso que já sabemos da guerra ideológica que querem travar contra o gênero e a sexualidade na escola e na vida. E tudo que ocorreu ontem só mostrou a invisibilidade da infância , da intersexualidade e da transexualidade de forma conjunta. Afinal ser trans é uma afronta contra Deus, ser intersexo com genitália ambígua é contra a sociedade e juntas elas são claramente opostas a heteronormatividade, mas permitam-me dizer que a endocissexualidade dentro de uma governo federal declarou guerra a tudo que se opõe contra ela na infância.
Diante dos corpos intersexos segundo o Conselho federal de Medicina definiu em 2003, aparece uma emergência social. Nascemos sem roupa de tecido, antes mesmo de nascermos recebemos uma “roupa de gênero” dada pela Endossexualidade que pode ou não ser confirmada no nascimento. Esse termo é um termo usado na militância intersexo para definir pessoas que não são como nós. Em um artigo que acabou de ser submetido a análise de uma revista abordo a questão de forma acadêmica e faço uma expansão para poder explicar esse novo conceito que estou trabalhando*. Em resumo, a endossexualidade se resume a um projeto discursivo e que se insere na sociedade e nas práticas médicas que observa o corpo biológico humano atrelado a uma congruência em 3 níveis. São eles: genital, hormonal e cromossômico se em pelo menos 2 níveis este corpo estiver congruente, pode ser chamado de endosexo. Esta congruência pode se revelar no nascimento em corpos com genitália indefinida (comumente chamada de ambígua) ou durante a adolescência e a vida adulta.
O ultrassom, o tamanho da barriga , o chá de revelação são alguns dos momentos em que essa roupa de gênero invisível que já carrega uma história social nos é dada. Diante da incogruência constatada pela endossexualidade presente na prática médica, segue-se a escolha de um sexo e sua execução por meio cirúrgico em bebês definidos como intersexo – ao detectar-se uma genitália indefinida que manifesta num desencontro de hormonios e cromossomos essa prática é reconhecida pela comunidade intersexo como mutilação genital intersexo. Na maioria dos casos a decisão é médica cuja ética se alimenta do padrão heteronormativo vigente pela sociedade em consentimento com seus responsáveis legais. A medicina também não leva em conta o consentimento da criança já que pela lei e pela sociedade , esta é considerada incapaz e diante da urgência social que ela apresenta não se espera seu crescimento por mais que isto seja essencial para não comprometer seu desenvolvimento e sua psiquê. Neste ponto é preciso destacar a importância do prefixo cis que contém o termo, fazendo alusão a uma necessidade, ser respeitado o tempo e a formação da identidade de gênero do indivíduo, o que permite pensar que há corpos que recebem um sexo ao nascer e podem se perceber ao longo da vida não correspondendo ao que lhes foi designado, por causa disso é preciso adicionar a questão da transexualidade.
Eu digo se há algo que não é levado a sério pela medicina e também pela sociedade é a formação da identidade de gênero que não se resume ao biológico, mas contempla o olhar do indivíduo sobre si conforme o tempo passa e se começa a se perceber quem você é diante de tudo e de todos. Essa questão não é respeitada tanto para pessoas trans quanto para pessoas intersexo. As polêmicas que presenciamos no Brasil quando se fala de infância estão atrelados ao fato de não se respeitar a voz da criança e também do adolescente, como se essa fase da vida fosse cheia de quereres sem consciência, quando na realidade o que se apresenta é a imposição do mundo e da visão adulta que muitas vezes ignora as questões apresentadas quanto ao gênero e o corpo, seja por não se entender no que lhe foi assignado, seja por não querer um sexo que se deseja impor. Esse fato se revelou principalmente em momentos como os colocado na fala da ministra, roupas e gênero como estanques e fixos. Chegava a passar mal por horas no shopping ao pensar em ter que provar vestidos e saias com adereços ligados a feminilidade, o que me privou de entrar por muitos anos em shoppings, além das lembranças sobre cores mais escuras ou na escala de cinza serem consideradas roupas de mulher-macho pela minha mãe.
O gênero assignado ao nascer pela endocisexualidade seja pela via do aspecto da congruência corporal ou no desenvolvimento pelo desencaixe nas normas da heterocisnormatividade, são um prisão da qual acho que ninguém deveria ser colocado. A fala da ministra denuncia não só um projeto heterocisnormativo que não apresenta o mundo e suas possibilidades confiando no que sentem em seus corpos e mentes crianças e adolescentes, como uma declaração de guerra aos questionamentos das corporalidades divergentes que aparecem das corporalidades e identidades de gêneros discutidas por partes do movimento LGBTI. Apesar de ver memes veiculados pela direita e pela esquerda que colocam em cheque as corporalidades e nossos desafios, me pergunto se é produtivo divulgar memes que possam causar algum tipo de aflito a uma comunidade, nesse caso a trans e intersexo, é preciso pensar quem atingimos com nossa presença no mundo virtual e chamo todos a essa reflexão.
Afirmo diante disso , minha posição enquanto trans, intersexo e pesquisador a favor e na luta pela liberdade de gênero e de uma infância que seja ouvida pelos adultos num mundo em que a pluralidade das vidas sejam respeitadas, inclusive aquelas que são não-binaries. Coloco-me contra a mutilação genital intersexo e a favor das crianças transgênero. Diante de um governo que não quer permitir nossa existência, estamos, somos e seremos mais do que tudo, resistência.
*Em breve será publicado numa revista científica um texto pormenorizado sobre o conceito. Aguardem.