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Vivemos numa sociedade em que é possível dizer que mulheres trans e travestis estão “invadindo” espaços femininos ao utilizar o banheiro feminino. Vivemos numa sociedade em que pessoas cis se acham no direito de negar o acesso a esse espaço com base numa retórica perversa de culpabilização da população de travestis e transexuais por um risco virtual de homens agredirem mulheres em banheiros.

Como se pelo fato de travestis e mulheres trans pudessem usar o banheiro autorizasse, como num passe de mágica, que homens passassem, só assim e por causa disso, a atacar mulheres nesses espaços. Como se homens cisgêneros mal intencionados só fossem entrar nos banheiros femininos para praticar crimes se travestis e transexuais tiverem o direito de ir e vir assegurado nestes espaços. Como se tais crimes só pudessem ser causados nos banheiros femininos pelo fato de travestis terem a presunção de inocência garantida no direito de ir e vir. Como se travestis pudessem serem culpadas de antemão por crimes que elas jamais iriam vir a cometer.

Como se o fato de travestis tiverem acesso ao espaço como qualquer outra mulher cis implicasse automaticamente na culpabilização delas pelo fato de poder haver um presumido risco aumentado de homens cis abusarem de mulheres cis. Como se pessoas cis já não compartilhassem os banheiros com pessoas trans. Como se mulheres trans e travestis já não utilizassem o banheiro feminino hoje em dia, como se mulheres cis não estivessem desde sempre compartilhando, muitas vezes sem saber, o banheiro com travestis e mulheres trans.

Como se defender um direito fundamental fosse o mesmo que autorizar que violências aconteçam neste espaços.  Como se pudêssemos ser coniventes com o abuso pelo fato de defendermos o acesso ao banheiro feminino para travestis e transexuais. Como se o direito de mulheres trans e travestis fosse antagônico ao de mulheres cisgêneras. Como se mulheres trans e travestis não fossem também mulheres, como se elas só pudessem representar um perigo indesejado, como se pudêssemos pensar em travestis e transexuais tão somente como seres indesejados na sociedade.

Como se fosse evidente distinguir travestis das mulheres cis, como se isso fosse ao menos desejado em nome de uma pretensa “proteção”. Como se a vontade de saber “distinguir” travestis de mulheres cis não se pautasse no reforço dos ditos estereótipos de gênero. Como se não fosse violento as formas de verificação de quem pode ou não acessar esse espaço com base em leituras sociais que determinam as pretensas verdades sobre o gênero de alguém. Como se isso não fosse violento para todas as pessoas e mulheres. Como se o recrudescimento do controle de quem pode acessar esses espaços com base no binarismo de gênero não fosse uma violência para qualquer pessoa, inclusive mulheres cis. Como se não fosse completamente inviável qualquer sistema de verificação inequívoca sobre quem seria cis ou trans, homem ou mulher. Como se a proibição do uso do banheiro para travestis não implicasse numa pressão (desde sempre cruel) ainda maior pela passabilidade cis (desde sempre calcada no dito “reforço dos estereótipos de gênero”). Como se a proibição do uso do banheiro feminino para travestis não recrudescesse as inúmeras vulnerabilidades e violências que travestis estão expostas em sociedade.

E tudo isso ser tomado como algo simplesmente evidente, passível de ser defendido no debate público como uma opinião supostamente válida, como se se tratasse de uma mera relação de causalidade. A presunção de inocência no exercício de ir e vir da população de travestis e transexuais é vista como passível de questionamento no debate público. Travestis e transexuais são vistas como pessoas que “incomodam” pessoas cis pelo fato de respirarem o mesmo ar que elas. Incomodam simplesmente porque elas negaram as expectativas sociais de enquadramento de gênero, elas ousam viver vidas consideras inviáveis e habitar lugares “não feitos para” elas.

Eu peço a todas as pessoas cis, homens e mulheres cis aliadas que não ignorem essas desonestidades e que se manifestem contra essas retóricas desumanizantes, estigmatizantes e culpabilizantes. Eu peço que pessoas cis venham a público denunciar a desonestidade que reside na argumentação de posições que defendem a expulsão de mulheres trans e travestis alegando o subterfúgio de proteção às mulheres cis.

É importante porque estamos falando de uma população vulnerável, excluída não apenas dos banheiros mas dos espaços em que esses banheiros públicos existem, como escolas, universidades e locais de trabalho.

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2 Comments

  1. Leandro says:

    Olá.
    Importante sempre dar visibilidade ao tema e tratar a questão trans com respeito. Trabalho com o tema sob a perspectiva jurídica e sei o quanto é complicado.
    No final do ano passado publiquei um artigo em uma revista de Direito falando sobre o mercado trans e as consequências jurídicas e financeiras da questão da utilização do banheiro. Tenho tentado difundir a informação de forma mais ampla através do meu Twitter (@direitotrans) e com isso ajudar a construir um mundo com mais respeito e menos preconceito.
    Parabéns pelo trabalho

  2. […] “Como se” travestis não fossem humanas: o acesso ao banheiro feminino. […]

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