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Sobre a infância , os memes e a endocissexualidade
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Imagem por Philippe Teuwen

Tenho observado que parte considerável dos eleitores do #EleNão justificam seus votos alegando que protegerão as crianças. Obviamente se referem ao que chamam de “kitgay”, na realidade o projeto Escola Sem Homofobia, ou ao plano de debater gênero nas instituições de ensino, aquilo que chamam de “ideologia de gênero”, um espantalho dos estudos de gênero e diversidade no Brasil. Muitas pessoas já desmascararam as Fakenews envolvendo esses dois assuntos, o que me motiva a pontuar algumas coisas relacionadas ao tema. Ao ler cada comentário dos autodeclarados cidadãos de bem, percebo, ora por ignorância, ora por má fé, ideias oriundas de um discurso ardilosamente arquitetado que direta ou indiretamente contraria os próprios princípios de integridade infantil. Esse discurso, que violenta e retira a agência das crianças, se veste de protecionismo. Diante disso, dessa farsa que, alinhada a outros ideais da mesma corrente, é uma afronta aos Direitos Humanos, inevitavelmente me vêm à memória a figura da bruxa do conto João e Maria, antagonista que atraía as crianças para a sua sedutora casa de guloseimas, os alimentava com as melhores iguarias para engordá-los e cozinhá-los vivos. Vamos, então, analisar esse banquete aparentemente gentil que está sendo ofertado às nossas crianças para entupí-las, engordá-las e devorá-las de dentro para fora?

1° – É sabido que a atração afetivo-sexual não é algo passível de ensinamento. As pessoas simplesmente percebem seus prazeres e constroem suas práticas sexuais à revelia dos ensinamentos, mesmo quando as reprimem pela manutenção da segurança. Foucalt já dizia que onde há poder, há contrapoder. Os ensinamentos de sexualidade de determinada cultura só determinam a forma como cada indivíduo irá expressar e vivenciar sua sexualidade na interação com o outro, se no sigilo ou no conforto da “normalidade”. O que se é construído, portanto ensinado, é a forma como cada um nomeia e exerce essa atração, ou seja, a sexualidade é também observada na dimensão social ao passo que se desenvolve uma cultura e um valor em torno de cada uma das suas manifestações.

2° – Entendendo o item primeiro, o debate sobre as diversas manifestações da sexualidade humana não teriam o poder de produzir ou reconfigurar as sexualidades dos sujeitos, mesmo se tratando de crianças, ainda que a intenção fosse ajustá-las a uma suposta homoafetividade, proposta que sequer foi cogitada pela esquerda. Se assim fosse possível, a “Cura Gay”, seu radical oposto, não teria falhado miseravelmente e sofrido repúdio unânime entre entre os códigos de ética de todas as profissões que lidam de certa forma com a subjetividade humana. Ora, se não podemos reorientar a homoafetividade, igualmente com outras orientações não podemos fazê-lo.

3° – Nós, dos estudos de gênero e sexualidade, entendemos que todas as expressões da sexualidade e todas as possibilidades de se vivenciar o gênero são naturais e legítimas, portanto não há razão para que queiramos “reorientar” heterossexuais, ainda que fosse possível, justamente por isso a discussão sobre a “Cura Gay” para nós fenece antes mesmo de chegarmos em sua eficiência, ou seja, ainda que a técnica fosse bem-sucedida, seríamos contra ela, posto que não concordamos com a naturalização da heterossexualidade que gera estigmatização e marginalização das sexualidades hétero-dissidentes, assim sendo, não pensamos a homossexualidade, a bissexualidade, a pansexualidade ou a assexualidade como malefícios sociais, ao contrário, celebramos a diversidade humana em plenitude, acreditamos no potencial positivo de todas as formas de ser e amar sem hierarquias.

4° – Quem entende que todas as sexualidades são legítimas e percebidas-construídas por processos semelhantes, mudando apenas a recepção social por conta dos juízos de valor recalcados na cultura, e mesmo assim se coloca contra tudo aquilo que não corresponda às suas idealizações de “vida digna”, precisa perceber que a intolerância é produto dos seus costumes e tradições, historicamente localizados, redutivos e violentos, que ferem os direitos humanos e não podem ser justificados em um suposto progresso social. Admita sua postura conservadora, reacionária, proselitista, tome razão dessa agência e pare de se colocar a favor do bem-estar social, já que os grupos beneficiados por esses dogmas correspondem a uma minoria populacional que só ganha força e coro por seduzir os oprimidos com sua falsa aceitação através do discurso de “tolerância” e dos pequenos privilégios concedidos àqueles que se inscrevem no sistema.

5° – O discurso de ódio que se pinta de protecionista é embusteiro, capcioso, manipulador. Quantas das pessoas que estão aparentemente preocupadas com a integridade infantil realmente aplicam seu tempo pensando em políticas para as crianças? Quantas delas, em outros momentos anteriores à conjuntura política atual, demonstraram-se preocupadas com a saúde dessa população? Quantos desses homens e mulheres violentam seus filhos com a cisnormatividade e heteronormatividade? Quantos não abandonaram crianças e, curiosamente, os mesmos que se colocam contra a adoção por casais homo, agora elegem esse discurso para promover seus REAIS interesses políticos e econômicos ao colocar o fascismo no poder? Como levantar a bandeira infantil e colocar-se a favor do armamento livre, da meritocracia e da tortura?

6° – Nós, progressistas, feministas, transativistas, estudiosos de gênero e diversidade, é quem combatemos a única ideologia de gênero que impera em nossa sociedade, inclusive e sobretudo nas escolas; a cis-hetero-normatividade. Crianças desde cedo têm seus corpos invadidos e programados para aderirem a determinado gênero e determinada sexualidade. Isso que os conservadores chamam de “ideologia de gênero” nada mais é do que um combate justamente à única ideologia naturalizada em nossa sociedade, que diz que, por natureza:

a) Todo macho é homem, toda fêmea é mulher (cisnormatividade);
b) Só existem essas duas possibilidades de se vivenciar o sexo/gênero de forma natural (binarismo de gênero);
c) Todo homem e mulher devem ser heterossexuais (heteronormatividade);
d) Todas as relações heterossexuais devem ser monogâmicas, genitalizantes e ciscentradas, preferencialmente atravessadas pela branquitude (colonialidade);
e) O homem é mais poderoso biologicamente, psicologicamente, socialmente, culturalmente e politicamente que a mulher (machismo/patriarcado);
f) O homem branco é superior aos demais (eurocentrismo).

Esses são os pilares da ideologia de gênero que domina a nossa sociedade, pilares que nossa luta visa desconstruir ao invés de, em lógica semelhante, impor uma dada experiência como universal. Somos a favor da pluralidade e defendemos inclusive o seu direito de ser cis-hétero, desde que destituído de privilégios infundados.

7° – Só atingiremos a plenitude do respeito e da cidadania quando nossas existências, seja ela marcada pela estigmatização de uma sexualidade, seja por gênero, quando a sociedade estiver preparada para aceitá-las ainda que fossem opção. É verdade que já superamos essa ideia de “escolha” em relação à sexualidade e identidade de gênero, assim como estamos questionando o determinismo biológico para que esses fenômenos sejam entendidos em sua dimensão interdisciplinar, biopsicossocial, mas não dá pra engolir em pleno 2018, após tanto avanço na discussão, que alguém nos “tolera” porque “não escolhemos ser assim”, já
que “ninguém escolheria ser assim”. O que torna nossas experiências degradantes é a LGBTQIfobia, não nossas existências per si. Você precisa entender que somos dignos ainda que tenhamos escolhido ser assim, porque a única razão de alguém querer “deixar de ser”, sem nunca conseguir, é a sua violência. Você, LGBTQI que está digerindo esse discurso de quem diz te aceitar, desde que as crianças DELES não aprendam a ser como VOCÊ, acorde! ACORDE! Por trás dessa, como de qualquer outra dicotomia, há um abismo que separa eles de nós, o mesmo abismo que nos afasta do emprego, da saúde, da educação, do trabalho formal, da sociedade em si.

O buffet aqui servido talvez pareça amargo para os prisioneiros da Casa de Doces, onde todo o cenário ilusório aparenta convergir para a síntese do paraíso. Lá as mais suculentas trufas, como toda entrada, fascina por combater uma ideia que elas próprias inventam, que é acreditar que a homossexualidade pode ser ensinada e aprendida nas escolas e que isso faz parte de um plano de governo de esquerda. Elas nos abrem para o rodízio de doces que convencem os degustadores da degradação moral de determinadas identidades e que por isso precisamos combatê-las em prol de uma ordem moral. A sobremesa sem dúvidas é quem conquista o paladar, seu sabor é tão poderoso que faz qualquer um que a prove acreditar no aconchego e na receptividade daquela prisão disfarçada de lar. O Complexo da Bruxa dos Doces é um conjunto de falácias que lhe faz pensar que a perversa assassina é na verdade uma heróica senhora que combate a fome e a miséria do vilarejo com suas fartas gostosuras, cujo exemplo deve ser seguido. Trata-se de qualquer discurso que coloque seu locutor em uma posição contrária ao que realmente prega, fazendo-o crer que, ao reforçá-la, está obtendo resultados positivos que desconsideram o potencial negativo dos efeitos inerentes à causa. O complexado quase sempre evoca um ídolo igualmente complexado. Muitas vezes isso é feito por ingenuidade, ignorância, falta de atenção ou conformismo, mas em alguns casos há má fé e pura manipulação dos fatos em prol de interesses pessoais.
Pessoas LGBTQIs estão se entalando com esse veneno que se vende de tolerante.
Você, que está se lambuzando com o discurso de proteção às crianças, pare para refletir sobre a quais ambições você realmente está se colocando a favor e o faça com consciência de que isso em nada te beneficiará, porque não há experiência de autonomia, conforto e liberdade, seja qual for a sua identidade de gênero ou sexualidade, em um sistema que legisla sobre seu corpo e lima sua verdade. Acorde desse conto de fadas e perceba a maldade por trás da aparência frágil do vilão que tão brevemente aprisionará seus filhos para derretê-los no caldeirão do armamento livre, da redução da maioridade penal, do descaso com a educação e saúde pública, de um governo para quem tem capital financeiro. Precisamos mesmo esperar que ele tome o poder para mostrar sua verdadeira face? Estamos escancarando a trilha de volta ao progresso aos que se perderam no caminho. Não dá mais para acreditar em falsos messias dentro de um sistema democrático. A decisão é nossa, tem que ser nossa. Se liberte do vício desse discurso açucarado que não lhe deixa enxergar a maldade da bruxa que tem servido o banquete da morte para a população antes que seja tarde. Rebele-se. Atire-a no caldeirão da derrota eleitoral antes que seja você a jujuba do bolo.

Yuna
Yuna
cantora, compositora e poetisa transgênera. Baiana, natural de Salvador, apaixonada pela transdisciplinaridade, aborda em seu trabalho artístico a generificação dos corpos e suas performatividades. Graduanda em Artes pela Universidade Federal da Bahia, é ativista dos estudos de gênero e diversidade, área de concentração de suas pesquisas e produções.

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