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Fonte: UNC Charlotte

Há uma semana atrás nós tivemos a primeira sustentação oral feita por uma pessoa trans no STF, pela advogada paranaense Gisele Alessandra Schmidt. Quero aproveitar o depoimento que a Alessandra deu ao jornal Folha de São Paulo1 para refletir um pouco sobre a situação das pessoas trans que não necessariamente estão na situação considerada “comum” de marginalidade para então pensar na nossa comunidade como um todo. Também vou aproveitar e citar uma atriz que recentemente voltou a ser notícia. A Maria Clara Spinelli. E de outra, eu mesma.

Como parte do julgamento da ADI 42752 que trata sobre o direito de alteração de nome e sexo nos documentos de pessoas trans sem a necessidade de exigência cirúrgica, a advogada Gisele Alessandra, num discurso de cerca de 10 minutos defendeu o direito à alteração de nome e sexo sem necessidade de cirurgias mas também sem a necessidade de laudos médicos ou psiquiátricos. Vamos focar em alguns trechos da sustentação oral3 da Gisele:

“Sobrevivi ao apedrejamento moral e físico, à proibição de estar na rua e nos espaços públicos mesmo à luz do dia.”

“Não obstante estar hoje neste espaço e gozar de certa dignidade, não fui exceção no que concerne às agruras vividas pelas pessoas trans brasileiras: ‘bulling’ no ambiente escolar, exclusão do seio familiar quando veio à tona minha identidade de gênero, exclusão do mercado de trabalho. Estas situações que vivi por ser pessoa trans trouxeram feridas intratáveis em minha vida.”

E aqui alguns trechos do depoimento que a advogada deu à Folha:

“Na escola, a piazada me batia, cuspia, chutava. Foi um trauma muito grande.”

“Até agora, eu sobrevivi. Mas não sei se vou continuar sobrevivendo. Eu pensei várias vezes em suicídio. Quando eu tinha 12 anos, eu tentei. Mas eu estava perdida. me sentia um monstro. E ainda não se fala disso nas escolas.”

Eu quero focar especificamente nestes trechos porque são as palavras de uma trans de classe média, que em tese teria todas as condições financeiras para ter uma vida mais fácil e mais tranquila. Mas não é assim. Porque o processo de exclusão tem muitas nuances. Quando ela diz que “mas não sei se vou continuar sobrevivendo” ela está expondo que mesmo tendo diploma em direito e carteira da OAB, que não são garantias de uma vida tranquila. Que a transfobia não só continua a atingí-la, como a afeta num nível onde ela não pode garantir se é capaz de superar essas opressões todas.

A primeira vez que ouvi falar da Maria Clara Spinelli foi há pouco mais de 10 anos. Ela participava junto comigo de uma lista de discussão de mulheres trans no “Yahoo Groups”. Na época ela começou a se envolver com teatro e de então fiquei anos sem ter notícias dela. Até que com surpresa encontro seu nome no jornal, uma nota sobre o Festival de Paulínia onde Maria Clara recebe o prêmio de melhor atriz. Na mesma semana ela ganhou críticas de página inteira nos principais jornais de São Paulo, com rasgados elogios à sua atuação no filme “Quanto Dura o Amor?” de 2009. A Maria Clara ficou anos no anonimato. Só recentemente recebeu convite da Glória Perez para atuar numa novela atual da Rede Globo. Como uma atriz, vencedora de um prêmio de melhor atriz num dos principais festivais de cinema do país não conseguiu nenhum outro papel no cinema ou TV?

“Eu lutei por isso a vida toda. Tenho mais de 15 anos de carreira e achei que não fosse acontecer. Já era conhecida no meio artístico. Diversos diretores, produtores e autores gostavam do meu trabalho, mas nunca me deram essa chance. Existia uma resistência, talvez por medo de o público não aceitar.”4

Eu, Aline Freitas, tenho origem suburbana, venho de Mauá, na região do Grande ABC em São Paulo e ainda como parte do ‘boom’ das indústrias da região, filha de pai operário, tive acesso a escolas de qualidade. Mas a somatória dos fatores que incluem crise econômica, desestabilização familiar me fizeram ter que trabalhar desde os 13 anos de idade. Meus conflitos de identidade de gênero tiveram seu ápice neste período de adolescência o que deixou marcas, cicatrizes que vão durar por toda a minha vida. Quando me inseri na área de tecnologia eu já havia me assumido, o que quer dizer que as dificuldades de atuar numa área machista, onde a presença feminina é rara foram e continuam sendo enormes. A instabilidade, insegurança, são desafios constantes.

Estar em condições financeiras aparentemente boas, ter um bom trabalho, uma profissão com grande demanda, nada disso são garantias de uma vida estável para uma pessoa trans. A nossa diferença nos marca em todos os lugares, em todos os ambientes, mesmo na maior cidade do país. É um mito que pessoas trans aparentemente bem estabelecidas tenham uma vida tranquila. O “bem estabelecidas” é por si mesmo um mito. E essa intranquilidade está a cada vez que erram nossos gêneros, a cada vez que precisamos ter algum tipo de atendimento médico, a cada vez que somos vistas ou identificadas como pessoas trans. As sutilezas podem ser fatores de desestabilização como o desdém, quando nosso profissionalismo é colocado em dúvida, quando somos caladas.

Há muitas possíveis frentes para enfrentar a exclusão social da nossa população trans. A advogada Gisele atua numa frente muito importante no judiciário. A Maria Clara, na TV. Mas perceba a necessidade do envolvimento de toda a sociedade nessa discussão. Inclusão de gênero, de raça, de idade, são itens que muitas empresas se orgulham de ostentar nestes anos 10 deste século XXI. Mas quantas pessoas trans sua empresa emprega?

Às pessoas trans que me lêem, estudem, lutem, ocupem todos os espaços, todas as profissões. Sejamos presentes, tenhamos voz. Um futuro melhor para as futuras gerações de travestis, trans mulheres e trans homens também passa pelos caminhos que abrirmos.

Referências

1. Advogada transexual luta por dignidade no plenário do Supremo
2. ADI 4275 – AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE
3. Leia na íntegra a sustentação oral da advogada Gisele Alessandra Schmidt e Silva.
4. Primeira transexual a interpretar mulher cisgênero em novela, Maria Clara Spinelli ressalta importância de ‘A força do querer’

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