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Fonte Flickr Robson Magalhães

Uns dias atrás eu tava vendo as minhas lembranças do facebook. Vou contar sobre uma delas, foi na época em que eu estava fazendo minha monografia (trabalho de conclusão do meu curso de letras). Na época, eu ainda não tinha retificado meus documentos, o processo ainda estava rolando (demorou quase 2 anos).
Eu vi uma lembrança que eu tinha compartilhado e até esquecido, e eu tinha compartilhado uma mensagem que a secretaria de graduação me enviou, falando que eu teria que colocar o nome de registro na capa da minha monografia, que iria ser defendida em breve, na época.
Na época, era evidente pra mim a minha posição de resistência: jamais me veio a cabeça respeitar esse tipo de imposição que pessoas cis inventam. Eu inclusive conseguia debochar dessa pretensa exigência. Só hoje, a partir do momento em que me esqueci do que havia acontecido comigo, que eu pude ficar espantada comigo mesma, com a própria integridade da força desta minha posição de resistência.
Tanto é que eu não apenas não coloquei meu nome de registro civil na monografia, tanto é que de fato, isso nunca precisou ser feito. Tanto é que isso jamais representou qualquer empecilho para a minha conclusão do curso ou para a defesa da minha monografia. Quando será que pessoas cis vão entender que respeitar os nomes das pessoas trans em documentos oficiais não irá causar nenhum tipo de “bug do milênio” nos cis.temas de burocracias?

Um parêntesis: se estamos falando de recordação, vale ressaltar a minha trajetória com a implementação do nome social na Unicamp, instituição em que me graduei – que vocês podem ler mais aqui. Não é fortuito, frente à minha mobilização (ou melhor, via crucis) de implementar o nome social nesta universidade, a aparição deste tipo de “exigência”.
Mas eu tinha me esquecido dessa história. Hoje em dia, com os documentos retificados, é inimaginável passar por uma situação como essa novamente. E só hoje, olhando pra trás; só hoje, depois de ter esquecido o que tinha me acontecido; só hoje eu consegui ver, de forma mais ou menos distanciada, o quanto aquilo era violento, absurdo. A burocracia é uma distopia cotidiana para a vida das pessoas trans.
E eu digo “hoje” não porque não tinha consciência da violência na época – tanto é que, na época, minha posição de resistência era absolutamente cristalina. Mas era outra posição, outro contexto existencial, eram outras injunções de sobrevivência simbólica incontornáveis.
Eu só consigo ver essa violência de outra forma simplesmente porque, a partir do momento em que isso não é um horizonte de possibilidade, eu me pude ver enquanto vulnerável – se isso, por acaso, me acontecesse novamente. Só hoje eu pensaria nos “riscos” e inseguranças que a minha posição de resistência poderia implicar e significar.
Só hoje eu me vi numa posição diferente, de fato poder estar vulnerável, de me permitir estar vulnerável, ou melhor, de me entender enquanto ocupante de uma posição extremamente vulnerável, pois é só estando vulnerável a esse tipo de violência que eu pude saber uma faceta da violência – o que é um paradoxo, porque só pude me ver nesta posição quando essa questão burocrática deixou de ser uma preocupação para mim.
Como eu vejo, hoje, meu eu de ontem: “nossa que incrível que para mim estava cristalina a minha posição de resistência”. Eu pude me surpreender com a minha força, coragem, “intransigência”, poderiam pensar alguns.
Só hoje eu me lembrei do que me aconteceu e perceber como tais abusos e arbitrariedades ocorrem. Só hoje eu pude me colocar numa posição que não seria mais da resistência inequívoca, mas da maior perplexidade e vulnerabilidade.
Entrando mais precisamente no mérito da questão: simplesmente nunca obedeçam uma regra que seja injusta. Aliás, desconfiem justamente quando pessoas do alto de suas ignorâncias apresentam injustiças e/ou arbitrariedades como se fossem regras, como se fossem meras engrenagens de uma burocracia inexorável, as quais todas as pessoas simplesmente precisariam se submeter.
As vezes, na real, nem são regras; estão muito mais para invenções que saem espontaneamente do imaginário de algumas pessoas do que para regras de fato. Não apenas desconfiem, rejeitem e tripudiem o cis.tema.

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