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Fonte: Blog eldemonioblancodelateteraverde

 

Desde que o termo gênero chegou ao Brasil através da corrente feminista, uma série de questionamentos e inquietações outrora levantadas sob a perspectiva sexual ganharam não somente nova nomenclatura, mas outra dimensão em nossa sociedade. Ao passo que o termo vem para marcar questões socioculturais equivocadamente encaradas como próprias do campo biológico e, com isso, distinguir o que é inato do que é adquirido, quebrando a relação de dependência entre esses agentes (biológico x sociocultural), com o tempo essas duas categorias, sexo e gênero, acabaram se misturando e se confundindo em suas aplicações, retornando ao problema inicial da não-separação de suas propriedades.
A categoria gênero não foi criada para justificar a inadequação de determinadas identidades que divergiam das identidades socialmente esperadas para cada corpo. Essa significação é mérito das contribuições pós-estruturalistas, dos feminismos das diferenças paridos na terceira onda do movimento, do corpus que entendemos como Teoria Queer, enfim, dos saberes subalternos que contestam o sujeito iluminista e diversos saberes que partem de locais de fala naturalizados e privilegiados no contexto social. O termo no natalício vinha para desmi(s)tificar o determinismo biológico, especialmente o conceito de papel sexual, onde o comportamento humano era determinado irrevogavelmente pelos genitais. Refutada essa ideia – atitude que se inicia anteriormente à própria conceituação de gênero enquanto tal -, alguma outra categoria precisaria assumir a responsabilidade daquilo que o sexo já não podia mais tutelar. Gênero passou a representar, então, o campo abstrato de normas que regulam ou nomeiam esse conjunto de coisas que entendemos como femininas (e masculinas), ou seja, ensinadas como próprias da mulher (e do homem), que não são produtos de algum dado biológico, mas de uma construção social e cultural assimilada no processo de desenvolvimento e que se estabelece pré-nascimento a partir da expectativa social. Mas se são ensinadas, portanto aprendidas, podem ser desaprendidas, combatidas ou ressignificadas de acordo com cada individualidade, principalmente quando esses modelos embasam ou produzem opressões. Ao longo do tempo, diversas foram as pessoas em variadas civilizações que tensionaram esses papéis, das quais pouquíssimas temos o privilégio de ouvir falar.

Por muito tempo esse pensamento bastou no ambiente feminista. Através dele mulheres resistiram ao pensamento da época que as empurravam para a margem da sociedade, da história, da literatura, do próprio direito ao pensamento, às atividades políticas, à dignidade humana. Foi um momento marcante no histórico de enfrentamento às normas porque a figura feminina já não aceitava as vinculações sub-humanas que eram propagadas como verdades universais, quando não justificadas pela ciência, pela religião. No entanto, alguns indivíduos resistiam tanto às obrigações de gênero designadas no nascimento que não se reconheciam a partir delas como meros rebeldes, mas sim como membros efetivos de categorias outras, as quais reivindicavam para si. O conceito de gênero nesse instante, buscando compreender-se em caráter performativo, passa a sofrer um processo de ampliação para tornar inteligível os processos de transgressão extrema das normas. Ele passa a abarcar a transgeneridade e suas identidades de maneira despatologizada. Se não se nasce mulher, torna-se¹, qualquer corpo sexuado pode tornar-se mulher. Ou homem. Mais um passo resolvido. Mas se homem e mulher são constructos sociais, por que seriam os únicos e teríamos que forçar toda a diversidade humana a se definir a partir desse binarismo? Onde que o binarismo de gênero entra nessa história toda como vilão? No momento em que o gênero deveria se mostrar independente do sexo, tal como é, em sua multiplicidade, mas insiste em se alinhar a ele, ou melhor, ao que se acredita dele, a exemplo do dimorfismo sexual. Ora, se o sexo é binário, o gênero também haverá de ser. Será mesmo?

Primeiro que a existência de uma dicotomia sexual não nos dá nenhum dado substancial acerca do que se convencionou a chamar de gênero, sendo categorias completamente distintas. Corpos em uma das duas categorias sexuais podem se localizar com facilidade em quaisquer figuras sociais entendidas como gênero e a quantidade dessas figuras vai depender das configurações de cada sociedade levando em consideração suas tabelas de crenças. Impor nosso formato de leitura e organização social a outros grupos é um processo extremamente conhecido por nós como colonização.
Ainda que a existência dos gêneros tivessem total relação com a natureza sexual dos corpos, todavia, tais sistemas não seriam binários, porque o próprio sexo humano não é. O que existe é uma normatização binária que enquadra compulsoriamente corpos e mentes em duas extremidades, patologizando quaisquer dissidências deste modelo tão inventado quanto qualquer outro. Deste modo, temos as possibilidades que consideramos normais e as que consideramos anormais, no campo do sexo descritos como anomalias e no campo do gênero como transtornos, afinal, só existe o saudável porque existe o doente. O saudável é o não-doente. O cisgênero é o não-transgênero. A construção das condições através da diferença nos mostra que os sujeitos não marcados são os que se afirmam através da negação ou relação de oposição às condições dos sujeitos marcados, os enfermos, os errados, os estranhos, invertidos, pecadores, mutantes, os que são estudados e muitas vezes combatidos e exterminados. Não marcar um sujeito é naturalizá-lo em relação ao marcado. Marcar um sujeito é colocar sua condição em suspeita para ter que justificá-la. Para alimentar o dispositivo binário de gênero é preciso definir toda a variação para além dele como anti-natural e indesejável.
No modelo legitimado para a sociedade, então, só cabem dois grupos antagônicos, homem e mulher. Ainda nesta categoria, há o binário inteligível, que é o cisgênero, e o ininteligível, que é o transgênero, o que significa que homens e mulheres cis terão suas identidades reconhecidas, enquanto homens e mulheres trans, também binários, não terão esses direitos e não serão compreendidos, a menos que consigam esconder suas transgeneridades. Isso se dá porque entende-se que homem é macho e mulher é fêmea. E só existem machos e fêmeas. O binarismo de gênero, então, em seu desdobramento e funcionamento na sociedade, não sobrevive apenas por manter duas categorias como únicas, mas por definir quem pode ou não pertencer a elas. Em uma sociedade cisnormativa/ciscêntrica, o binarismo é cisgênero. Se você é transgênero, independentemente de ser binário ou não, o binarismo lhe dará tais destinos: Lhe jogará no campo do não-binarismo, aqui entendido como a terra-de-ninguém, o não-lugar, não-espaço, não-existência, não-entendimento, taxando-o como aberração que não é uma coisa ou outra, é coisa-alguma; ou lhe enquadrará forçosamente no binarismo cisgênero, tendo sua identidade de gênero substituída pela identidade designada no nascimento através do sexo; ou, ainda, as duas coisas, deslegitimando sua condição binária quando quiser usurpar sua dignidade humana ou legitimando um binarismo cisgênero quando quiser invalidar sua trangeneridade – o que frequentemente ocorre em nosso sistema contraditório.

O binarismo de gênero não afeta apenas transgêneros, a exemplo de transexuais e não-binários. Em uma sociedade marcada por uma posição hierárquica onde o homem cis possui uma infinidade de privilégios em relação à mulher, o binarismo funciona principalmente a seu favor. Ela garante que todo o grupo de não-homens esteja abaixo deles nessa relação de poder. A mulher, cis ou trans, dentro desse tipo de sistema é apenas uma identidade não-homem, como todas as demais identidades que não são legitimadas e compreendidas enquanto masculinas. A noção de normalidade sob a perspectiva binária só se fortalece através do sexismo, que subjuga também pessoas cisgêneras. Também não agridem indivíduos apenas no campo do gênero. Pessoas intersexuais são diretamente afetadas pela rigidez desse sistema, que funciona como um regulamentador não somente de identidades, mas de corpos em lógicas dicotômicas. Essa população tem seus corpos invadidos e normatizados diante da constatação da inconformidade com a norma binária e possuem suas possíveis identidades desconsideradas nesse processo.
Afirmar o gênero como sendo possível em apenas dois modelos é binarizar corpos e subjetividades. Mas corpos e subjetividades não são naturalmente binários. Eles podem ou não compor uma das categorias binárias. Essa é a grande diferença em colocar-se contra o binarismo e não às pessoas binárias, que são tão legítimas quanto as que não são. Enfrentar o binarismo de gênero é permitir que pessoas possam ser como elas são, sendo isso entendido como homem, como mulher ou como qualquer outra categoria para além dessa hegemonia. O binarismo de gênero é um dispositivo que modela e torna o próprio gênero uma experiência assustadora e aprisionante para pessoas que se reconhecem como binárias e não-binárias. Não se trata de identidades, mas de condições de expressões dessas identidades.

Afirmar o gênero como binário é sustentar um pensamento colonizador que assassina culturas alheias. É desconsiderar a existência de Hijras, de Muxes, de Berdaches (Dois-Espíritos) e, no nosso quase querido Brasil, das travestis que não se reivindicam homem ou mulher.
Negar o não-binarismo de gênero tendo como base a suposta materialidade dos corpos é reafirmar o gênero enquanto sexo e o sexo enquanto dicotômico. É naturalizar a generificação dos corpos em apenas duas categorias arbitrárias que funcionam como vetor de opressão. É, a rigor, defender o enquadramento compulsório de pessoas em uma das duas categorias oficializadas, o que significa agredir e violar pessoas fora desse binarismo sexual ou de gênero.

Todas as identidades são válidas, o binarismo de gênero não. Você, que deslegitima expressões, identidades ou discursos que tencionam o binarismo de gênero, sobretudo se você é também transgênero, já parou para se perguntar a quem o binarismo de gênero serve?

¹ frase de Simone de Beauvoir (1980, p. 9) extraída da obra O Segundo sexo.

 

 

Yuna
Yuna
cantora, compositora e poetisa transgênera. Baiana, natural de Salvador, apaixonada pela transdisciplinaridade, aborda em seu trabalho artístico a generificação dos corpos e suas performatividades. Graduanda em Artes pela Universidade Federal da Bahia, é ativista dos estudos de gênero e diversidade, área de concentração de suas pesquisas e produções.

1 Comment

  1. Apenas queria apontar que Berdache eh considerado um insulto para Two Spirits. Voce pode usar Winkte por exemplo.

    E o binarismo da sociedade eh mais antigo, comeca sociedade crista, comeca na idade media, lah pelo seculo V.

    Digo isso pq a sociedade judaica sempre aceitou o nao binarismo, por exemplo. Mesma coisa acontece com a cultura Viking.

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